03/05/2009

Rufus V


Hoje, Rufus, quero trazer aqui um acontecimento demasiado importante para mim.

Passaram-se 59 anos.

Era quarta-feira e era feriado. Não sei porquê, só sei que os meus pais me diziam que era feriado e que o aproveitaram para me baptizar.

Então hoje faço memória do meu novo nascimento pela Água e pelo Espírito.

Concordas quando te digo que foi importante?

Não tinha mais do que duas semanas e, naquela altura, baptizavam-se as crianças cedo. A mortalidade infantil era demasiado elevada e, à segurança, quanto mais cedo melhor.

Lembro-me da alegria de ver chegar a minha irmã mais nova que partiu com poucos dias. Foi baptizada à pressa para, segundo se dizia, chegar mais depressa a Casa, sem passar pelo limbo.

Ai o limbo!

Quantas histórias se contavam às crianças e nas quais se acreditava piamente.

Quando eu nasci, Rufus, ainda se falava de um deus de dedo esticado e castigador sempre atento às nossas faltas e aos nossos pecadilhos. O Deus do Antigo Testamento que não se compadecia com os seus, que se zangava e despejava toda a sua ira sobre os pobres dos humanos. O Deus que nos fez à Sua imagem e semelhança e que ficou muito satisfeito com a sua obra. O Deus que descansou e nos concedeu toda a liberdade para crescermos e nos multiplicarmos.

Não acredito que o Deus de Amor e de Bondade queira fazer mal aos seus.

Sabes, vivíamos numa Igreja fechada ao amor mas aberta ao castigo.

Ainda hoje ouço dizer, na pastoral do Baptismo, que não é bom deixar as crianças por baptizar.

Tantas tradições arreigadas e tão pouca compreensão de um acontecimento tão bonito e tão marcante na vida de um cristão.

Cristão é aquele que vive segundo o modelo de Jesus e lhe segue os ensinamentos.

E eu estou em fase de aprendizagem, de crescimento, de formação.

E sinto-me, hoje, mais rica que há 59 anos.

Tu ouvias falar de deuses que se zangavam, que discutiam, que se vingavam e eram eternos. Deuses que lá do alto do monte Olimpo controlavam tudo e todos.

Não será este o deus de alguns dos que se dizem cristãos?

O deus que tudo sabe, que tudo vê, que tudo controla?

O deus que atemoriza e que conhece tudo aquilo que eu sou, que eu faço e que eu digo.

O deus que não liberta e não dá espaço à liberdade.

Não, Rufus.

Este não é o meu deus.

O meu Deus é aquele que me deixa ser construtora da minha vida e da vida.

O meu Deus, quando me aceitou no dia do segundo nascimento, deu-me todos os instrumentos para que eu pudesse crescer em segurança e com serenidade.

E hoje não posso esquecer os meus companheiros de muitas brincadeiras, de muitas discussões, de muitas tareias: os meus irmãos.

Todos juntos desenvolvemos uma grande empatia e cumplicidade que, ao fim de tantos anos, continua presente. Somos sete e somos todos amigos. Tomamos grandes decisões, familiares, em conjunto e não há ninguém que consiga quebrar estes laços. Sabes, Rufus, crescemos juntos. Protegidos pelos pais que se mantinham atentos e não deixavam “pôr o pé em ramo verde”. Eram atentos e vigilantes. Incutiram princípios e falaram de virtudes.

Uma inconfidência, Rufus. O meu pai, logo após a eleição que colocou frente a frente o Américo Tomás e o Humberto Delgado teve complicações com a PIDE. Foi denunciado por alguém muito próximo e que lhe deixou de merecer confiança. Eu tinha sido a menina das alianças do seu casamento. Só mais tarde, depois da Revolução de Abril, é que percebi o motivo do esfriamento de ralações. O meu pai até era apoiante do General Sem Medo e reagiu mal quando se conheceram as chapeladas que colocaram o outro no poder. Este episódio tornou-o mais cauteloso. Estava em jogo a segurança de toda a família e com Salazar ninguém podia brincar. Ele tinha olhos e ouvidos em todo o lado, tal como o imperador de Roma.

Falta-me falar de mais duas pessoas que foram importantes neste dia e enquanto viveram: os meus padrinhos. Eram os meus avós maternos. Gostava muito deles e herdei do meu padrinho o gosto de brincar. Era um homem bonito e com piada. Eu não sei se tenho piada, mas sei que gosto muito de brincar.

Fisicamente sou muito parecida com a minha mãe e ela, por sua vez, é muito parecida com a mãe. Logo, Rufus, já sabes com quem sou parecida.



Hoje queria contar-te isto.

Concordas comigo?

É ou não é um dia importante?

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